terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A mídia e o Poder Paralelo - Entrevista com Cynara Menezes para a Revista Traulito

Em abril de 2012 a revista Carta Capital lançou uma série de reportagens denunciando o vínculo entre a revista Veja e o bicheiro Carlos Cachoeira. Uma das repórteres envolvidas na investigação é a jornalista Cynara Menezes, que concedeu esta entrevista a Traulito.
Cynara Menezes
Cynara Menezes
Traulito – Você pode nos contar o episódio passo a passo?
Cynara Menezes – Eu vou dizer a minha percepção desse caso. Às vezes as pessoas me perguntam: “Você acha que o repórter da Veja levou grana do Cachoeira?” Eu não acho. Eu acho que é um caso claríssimo de ambição por parte do repórter. Uma pessoa que se torna redator chefe da Abril não precisa se vendar para ninguém. Ele ganha muito bem, ele tem muitas vantagens. Ele chegou no auge da profissão. Então eu tenho certeza absoluta de que não foi uma questão de corrupção pessoal. Ele teve ambição, se rendeu aquele esquema. Do ponto de vista da revista, sim, é possível falar em conspiração: a Veja montou um esquema de poder paralelo no Brasil. Eles de certa forma utilizaram o esquema de espionagem do Cachoeira para tentar mexer no governo. Será possível mesmo que a Veja tenha se enganado com o Demóstenes Torres1? Eles sabiam a quem o grupo que estava servindo a eles era ligado.

Traulito – Ele foi eleito pela Veja um dos grandes moralistas do Congresso.
Cynara – Exatamente. Mas até que ponto a Veja não sabia das ligações dele? O delegado da Policia Federal afirma que sim, que a Veja tinha conhecimento de que os espiões e o Cachoeira estavam ligados a Demóstenes. São histórias recorrentes essas de que a Veja “se enganou” com pessoas. Eles venderam o Collor ao país como uma pessoa incrível, caçador de marajá. De repente, descobriu-se que não era nada disso. E a Revista Veja se disse desiludida. A entrevista do Roberto Civita é uma coisa impressionante: ele diz que quando viram o Collor pela primeira vez, eles pareciam uma mocinha de 18 anos, de tão encantados que ficaram. Ninguém mais acreditou no Collor, só a Veja acreditou.

Traulito – O PSDB fez campanha pelo Collor no segundo turno. Eu tinha amigos que eram ligados a uma esquerda do PSDB que fizeram campanha pelo Collor.
Cynara – O Fernando Henrique chegou a ser cotado para ministro do Collor.
Roberto Civita é um cara que ainda acredita na Guerra Fria, que é preciso parar o comunismo.
Traulito – Que outros arrependimentos houve na Veja?
Cynara – Depois teve o José Roberto Arruda2, que ia ser vice do Serra. Quando ele chorou pedindo perdão à nação, a Veja deu de novo espaço, divulgou a “volta por cima.” Vendeu ao país novamente uma pessoa que não prestava como se fosse boa. Aparentemente iludidos. Aí o terceiro e atual episódio: Demóstenes Torres. Se dependesse da Veja, teria ido para o Supremo Tribunal Federal. Se a CPI não descobrisse as ligações dele, estaria hoje posando de ético e se candidatando a uma vaga no maior tribunal do país, sendo que era um sujeito envolvido com um bandido. A Veja não se iludiu. Ela está há anos tentando impor ao país o seu projeto político. E agora decidiu fazer isso a qualquer preço, custe o que custar.

Traulito – Por que a ofensiva?
Cynara – O Brasil de certa maneira é um país cobiçado. E eu acho que daqui para frente a direita brasileira vai fazer qualquer coisa para pegar o país de volta. E eu acho que o jogo daqui pra frente vai ser pesado. Acho que se eles tiverem que guinar para a direita podre, eles vão guinar mais do que em 2010.

Traulito – Como que a Carta Capital decidiu enfrentar esse caso? E como você avalia a reação, a tentativa de esmagar a biografia do Mino Carta?
Cynara – O Mino trabalhou lá, ele obviamente tem sentimentos de mágoa em relação à Abril. As pessoas sempre falam: “Ah, o Mino tem mágoas.” Obviamente ele tem mágoa.Você percebe pelos textos que ele escreve. Agora a minha questão é: um homem, um jornalista não tem o direito de desprezar os barões da mídia? Por que não é legítimo esse sentimento? Por que todo mundo tem que concordar e respeitar? Por que uma pessoa não pode desafiá-lo? É esse o ponto. Eu sou uma pessoa que nunca usou esse termo PIG: o Partido da Imprensa Golpista, que muitas pessoas usam. Mas você fica penando que no mínimo conspiracionistas eles são, não é?

Traulito – Eu não sei detalhes do caso, mas quando começaram a divulgar as gravações do Cachoeira, foi a Polícia Federal que pôs em circulação essas gravações? Como se localizaram essas gravações entre o Cachoeira, o Paulo Preto3 e o Demóstenes? Como vocês descobriram esse vínculo com a Veja? A partir de que fontes, de que materiais?
Cynara – Tudo começou quando o Jornal O Globo divulgou as primeiras conversas entre o Cachoeira e o Demóstenes. A relação deles tinha começado porque a mulher do suplente do Demóstenes largou o marido para ficar com o Cachoeira. Aí ele disse que ficou amigo do Cachoeira para poder tentar resolver esse imbróglio. Depois houve uma matéria muito esquisita que a Veja fez sobre o hotel de José Dirceu. O José Dirceu deu queixa na polícia porque o rapaz tentou invadir o quarto dele. Seja quem for o José Dirceu, é abominável que um jornalista entre num quarto de outra pessoa. Isso é invasão de privacidade. E aí a revista saiu com a matéria mostrando cenas do corredor do hotel. Ele estava recebendo pessoas do governo e ele pode receber pessoas do governo. E quando começaram a sair as histórias do Demóstenes, começou a correr a informação de que as câmeras que foram colocadas no hotel foram colocadas por esse esquema do Cachoeira, o que já é bastante grave. Além de você tentar invadir o quarto da pessoa, você espionou a pessoa? Você colocou câmeras lá?

Traulito – E a faxineira pegou o jornalista entrando no quarto, não foi?
Cynara – Curiosamente, era o mesmo que fez depois a entrevista do Demóstenes Torres que dizia: “Só nos resta o Supremo Tribunal Federal.” É a mesma pessoa. Mas aí existia uma dúvida: eram as câmeras do próprio hotel ou eles botaram um segundo esquema de filmagem para pegar as pessoas? O delegado disse que eles tinham retirado as câmeras originais do corredor, dizendo que estavam com defeito, e puseram as câmeras deles, para depois pôr de volta as do hotel. Essas mesmas pessoas passaram os últimos dois anos dizendo que a gente vivia sob um estado policial e que o governo grampeava todo mundo. Eles diziam que o governo grampeava Gilmar Mendese Demóstenes Torres, mas o grampo nunca foi mostrado. Quando os rumores começaram a ficar muito fortes, a própria Veja publicou um texto do Cachoeira conversando com o Jairo, que é o repórter espião, tentando inocentar o empregado deles. Mas eu acho incrível que nenhuma das gravações envolvendo o Policarpo5 tenha vindo à tona. A Veja com segurança diz que não são 200, são só 2. E eles tiveram acesso às gravações, nós não conseguimos. O poder deles é tão grande, que eles blindaram as gravações relacionadas ao Policarpo.
Traulito – Mas os grampos mostram o Cachoeira indicando até a página onde ele quer que sua opinião apareça na revista, não é? Ele tinha poder de edição, não?
Cynara – Exatamente.
Traulito – Com quem são esses diálogos?
Cynara – Com o Cláudio Abreu6, o cara da Delta: “Manda ele botar na seção Radar.”

Traulito – Você acha que existem gravações dele com o Policarpo?
Cynara – Elas existem, mas eles conseguiram blindar isso. A gente não conseguiu ter acesso até agora. Eu acredito que elas vão aparecer mais cedo ou mais tarde. Com ou sem CPI, uma hora esses diálogos vão vir à tona.
Traulito – A Veja, nos últimos anos, acentuou uma linha conservadora, grosseira até. Chega a ser vulgar o estilo de propaganda política deles. Você acha que essa radicalização à direita da Veja se deve a quê?
Cynara – Acho que eles não aceitam de maneira nenhuma que o PT seja governo. Eu pensava a princípio que fosse uma coisa só econômica, que não houvesse ideologia por trás. Mas recentemente eu vi uma entrevista do Roberto Civita no Valor e você percebe que tem bastante ideologia. Ele é um cara que ainda acredita na Guerra Fria, que é preciso parar o comunismo. Ele é bem americano nesse sentido. Então eu acho que é uma coisa bem ideológica mesmo. Eles têm raiva. Se não fosse o PT, fosse o PSOL seria a mesma coisa.
Traulito – Mas do ponto de vista econômico e mesmo político, o governo Lula tem ajudado gente como eles.
Cynara – Eu acho que o projeto deles é de centro-direita. Acho que eles se alinham mais com os republicanos dos Estados Unidos. Semana passada eu vi esse cara, eu sinceramente acho ele doente, que é o Reinaldo Azevedo. Ele escreveu que o Haddad ia se encontrar com a militância gay do PT, que quer inclusive que travestis sejam professores. Acho incrível esse tipo de pensamento: qual o problema de um travesti ensinar? Essas pessoas têm medo de que a homossexualidade seja algo contagioso. Se o seu filho for ensinado por um professor travesti, ele vai virar automaticamente gay. Eu não consigo entender qual a racionalidade disso. E fico muito triste quando leio essas coisas. Eles acham que os travestis têm que ser putas para o resto da vida?

Traulito – Mas você acha que essa imprensa se une porque também tem rabo preso com o pior da elite nacional?
Cynara – Todos os grandes veículos só pertencem, como disse o Lula, a nove famílias. E eles já estão dominando também a internet. Se a gente deixar, não vai ter espaço para ninguém, só para as grandes corporações. Qualquer pessoa que desafia algo, eles vão massacrar. Eles vão se unir para massacrar.
Traulito – Parece que tem um caráter monopolista mesmo.
Cynara – Eles querem manter como está o negócio. Essa semana aconteceu uma manifestação gigantesca no México. Os mexicanos estão putos com os meio de comunicação de lá. Faz 15 dias saiu uma denúncia de que o candidato do PRI, que é apoiado por toda a mídia, pagou os meios de comunicação para falarem bem dele. O apresentador do principal telejornal do país recebeu dinheiro. Aí eles fizeram uma manifestação. Aqui só saiu: “Estudantes do México vão à rua contra ‘manipulação’ dos meios de comunicação.” Ninguém conta que houve uma mobilização forte, que eles podem perder esse poder pela primeira vez no México.

Traulito – E o ódio que elestêmda Kirchner na Argentina por peitar o Clarim?
Cynara – Vocês imaginem o que seria aqui diante do quê a Cristina fez. Para você assistir futebol na Argentina, você tinha que pagar, era tudo cabo, tudo pay-per-view. A Cristina estatizou o futebol: só quem passa agora é a televisão estatal. Os donos da mídia ficaram completamente enlouquecidos. Imagina se fizesse isso no Brasil? Se tirassem o futebol da Globo e pusessem na TV Educativa, eles derrubavam o governo.
Traulito – Ela é também uma pessoa mais combativa do que o governo do PT tem sido.
Cynara – Ou talvez a mídia daqui seja mais perigosa que a de lá.

Traulito – Você acredita que a internet equilibra um pouco esse quadro?A gente tem hoje blogueiros extremamente visitados, acessados, como o Luís Nassif ou mesmo o Paulo Henrique Amorim, que enfrentam o quadro da mídia concentrada.Você acha que isso tem algum efeito?
Cynara – Dá para fazer bastante barulho. Mas precisava ter um portal. Um portal poderoso, porque os portais estão todos nas mãos deles. Eles dominam os portais. Era o que eu queria: ajudar na criação de um portal alternativo.
Traulito – Agora, por curiosidade, como funciona no caso de um jornalista que começa a atuar de forma independente? Como ele sobrevive se ele tem um blog, alguma coisa assim?
Cynara – Nós da Carta sempre pensamos que depois de lá não vamos mais trabalhar em lugar nenhum (risos). Eu trabalhei na Veja por oito meses. Horrível. Foi uma experiência bem ruim, um equívoco. Depois trabalhei três anos na VIP. Foi confortável, ganhava bem, não tinha dores e cabeça, mas o que me acrescentou? Nada. Nada. Eu não tenho o menor desejo de trabalhar outra vez em um lugar desses. Por outro lado, eu tenho muitos sonhos ainda e acho possível outro tipo de jornalismo. Acho que a gente pode ainda inventar. Nessa história do México, um cara escreveu um artigo muito interessante. A Time fez um estudo sobre a cabeça das pessoas que nasceram na era da internet. E eles dividiram em dois grupos: os nativos digitais e os imigrantes digitais. Imigrantes digitais somos nós que nascemos depois, a gente que conheceu o online já adulto. Os nativos digitais, a cabeça deles funciona diferente. Eles mudam de plataforma 27 vezes por hora. Eles não se prendem a nada. Então eles saem do celular para o tablet, do tablet para a TV. Isso aí vai mudar o modo do jornalismo: o futuro da mídia é outro. A gente está engatinhando nisso ainda. Se por um lado eu sei que eu não vou mais trabalhar na Abril, ou talvez não vá trabalhar na Veja ou na Globo, eu acho que existe um mundo de possibilidades que a gente ainda nem conhece.
Se tirassem o futebol da Globo e pusessem naTV Educativa, eles derrubavam o governo.
Traulito – Você acha que o jornalismo reproduz uma tendência geral à troca de favores, ao empenho pela circulação.
Cynara – Acho, mas também existe o contrário. Quando eu vejo ocuparem Wall Street, quando eu vejo esses meninos no México ou os indignados na Espanha, eu percebo que o discurso do “outro mundo é possível” também tem muitos seguidores. É com essas pessoas que temos que conversar. Olha a fila que está aí fora, na porta do teatro de vocês. Uma peça de esquerda radical e as pessoas estão interessadas. Mas o modo de pensar do seu trabalho tem a ver com a atualidade. Não foi a direita que queimou o filme da esquerda, foi a esquerda que queimou o seu próprio filme cometendo erros. Esses meninos que fazem esses movimentos pelo mundo, eles são a esquerda legítima. Mas vá tentar dizer a eles que são de esquerda. Eles não aceitam, porque muito estrago foi feito e se dizer de esquerda virou uma coisa feia. Mas é preciso resgatar o verdadeiro sentido disso.
Demóstenes Torres, filiado ao DEM de Goiás, foi eleito senador da República em 2002 e assumiu em março de 2011 a liderança da bancada dos Democratas no Senado.
2 José Roberto Arruda foi eleito senador em 1994 pelo antigo PP. Em 1995 ingressou no PSDB e foi eleito governador do Distrito Federal em 2006.
3 Paulo Vieira de Souza, ou Paulo Preto, foi diretor de engenharia da Dersa, estatal paulista responsável por algumas das principais obras viárias do país, entre elas o Rodoanel.
Gilmar Mendes foi Advogado-Geral da União no Governo Fernando Henrique Cardoso e empossado ministro do Supremo Tribunal Federal em 2002. Foi presidente do STF de 2008 a 2010.
Policarpo Jr. é diretor da sucursal da Veja em Brasília e um dos redatores chefes da revista.
Cláudio Abreu é ex-diretor da empreiteira Delta Construções, empresa responsável por várias obras estatais e federais, licitações e prestação de serviços.
Entrevista tirada da Revista Eletrônica "Traulito", nº 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário